domingo, 19 de abril de 2009

A MATERNIDADE PELO AVESSO NO NOVO ROMANCE DE BERNARDO CARVALHO

Texto por MARTA BARBOSA
Colaboração para o UOL

O novo livro de Bernardo Carvalho, "O Filho da Mãe" (ed. Companhia das Letras, 199 páginas), periga ser um dos melhores títulos brasileiros do ano, sem nenhum exagero. Com uma trama complexa e muito bem construída, o autor consegue manter a tensão na leitura até a última das 199 páginas de texto. Dramática, a história transita pela guerra da Tchetchênia, por uma São Petersburgo em obras, pelo alto mar do Japão. E tudo se converge no tema da vulnerabilidade natural a todo e qualquer ser humano, em especial às mães.

Sim, os dramas da maternidade estão no epicentro do livro. Em alguns momentos, chega a ser patética a imagem de mãe criada por Bernardo, seja na figura da personagem incapaz de proteger o filho, seja na imagem da mulher desesperada em manter um não-sentimento pelo filho que abandonou. As mães são caóticas. Estão bem distante do pedestal aonde usualmente costumam ser elevadas. E a maternidade é apresentada em seu avesso: pelo abandono, desamparo e culpa.

Em um dos dramas, Olga deixa vencer-se pelo marido que quer a todo custo ver o enteado repetir suas pesadas experiências de juventude -- o que significa sobretudo entrar para o exército russo. Em sua defesa, Olga mente, "por condicionamento e inércia". Finge acreditar que só os homens que passam pelas forças armadas são capazes de sobreviver à Rússia. Dissimula que todos os horrores aos quais o filho é submetido são necessários. Tenta não enxergar a inquietação do padrasto ao ver que o enteado pode ter uma juventude diferente da sua, longe das humilhações e superações desnecessárias da guerra. Nikolai, o padrasto, encontra na submissão da mulher o aliado para fazer com que o jovem Andrei repita sua vida trágica, como se de repetições fosse o ciclo da vida.

Em outra ponta da trama, Anna é a mãe surpreendida pelo encontro com o filho que abandonou recém-nascido. Ela foge do passado porque está certa que ninguém ama por obrigação. E fica em pânico diante da mínima possibilidade de experimentar um sentimento qualquer dessa relação borrada. Não há inocência na imaturidade de Anna, nem nas dores de Olga, Nikolai, nem do próprio Andrei. Aliás, ingenuidade é algo que não existe nos personagens conflituosos desse romance.

Entre diálogos interrompidos e frases não-ditas, chama atenção no modo de narrar do autor a escolha do tempo verbal. Bernardo é fiel ao presente, o que traz um imediatismo jornalístico ao texto. Merece destaque as passagens de perseguição que atravessam as ruas da cidade "construída para ninguém escapar". A geografia de São Petersburgo moldura toda a trama, num exercício de descrição espacial muito bem executado. Os personagens de Bernardo estão sufocados pela poeira da cidade em obras, na véspera do seu tricentenário.

Amores expressos
"O Filho da Mãe" é o segundo volume da polêmica coleção Amores Expressos, pela qual 16 autores foram (financiados pela Lei Rouanet) para alguma parte do mundo (de Nova Iorque, Lisboa a Xangai) em busca de inspiração para escrever uma história de amor. O processo de seleção dos autores e o financiamento do governo à iniciativa causaram críticas. Polêmicas a parte, é bom ver que de São Petersburgo, Bernardo Carvalho trouxe um bom livro.

O carioca Bernardo Carvalho é apontado como um dos mais criativos entre a atual leva de escritores brasileiros. É dele o excelente "O Sol se Põe em São Paulo", além de duas premiadas publicações de ficção: "Nove Noites" (prêmio Portugal Telecom) e "Mongólia" (prêmio Jabuti), todos lançados pela Companhia das Letras.
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"O Filho da Mãe"
Autor: Bernardo Carvalho
Editora:Companhia das Letras
199 páginas
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LEIA UM TRECHO DO LIVRO

Andrei sai do quartel a tempo de chegar à praça da estação às nove da noite. Não deve ser visto. As ruas ainda não estão completamente desertas, mas a essa hora, pelo menos, sua figura solitária não despertará tanta suspeita quanto se passasse por ali de madrugada. Terá que voltar antes do último metrô, pelo mesmo motivo, para não ser visto como exceção. Leva a mochila vazia nas costas, como se estivesse de licença, a caminho de casa. É um disfarce inútil. No quartel, não engana ninguém. Não volta para casa desde que entrou para o serviço militar, vai fazer um ano. Não poderia voltar nem se estivesse de licença, já que foi ex-pulso de casa. A mãe e a irmã vivem onde termina o país, sete fusos horários à frente. Não recebe notícias das duas desde que chegou a São Petersburgo. Mesmo se tivesse permissão, não se atreveria a ligar, correndo o risco de ter que falar com o padrasto, no caso de ele atender. As cartas que escreve eventualmente, à noite, não passam de exercícios de comunicação, para não perder a prática, já que não pode enviá-las. Vai rasgá-las de qualquer jeito. Não conversa com ninguém. Não fala nem mesmo com as paredes, um vício de infância ao qual costumava recorrer, quando estava só, em Vladivostok, mas que interrompeu, providencialmente, nem que tenha sido por um espírito igualmente inconsciente de sobrevivência, quando chegou ao quartel. No dia da partida, em Vladivostok, a mãe foi ter com ele na estação. Apareceu de surpresa, quando Andrei já não a esperava, e lhe entregou um farnel para a viagem; disse ao filho que ele tinha a vida pela frente e o beijou na testa. Nem a raiva que a frase lhe despertou naquele momento - e que, no decorrer dos dias, ao longo da linha de trem até São Petersburgo, foi aos poucos sendo substituída pela saudade - seria capaz de fazê-lo desejar que a mãe soubesse o que a vida se tornou, que vida é essa que ele leva agora. O soldado na guarita sabe muito bem aonde é que ele vai (é possível que também tenha sido obrigado a passar pela mesma humilhação quando recruta) e não perde a oportunidade de fazer uma gracinha. Andrei finge que não ouve. Os rumores correm à boca miúda entre os soldados e os oficiais do regimento. A asneira foi ter retrucado, a sério, que era o único filho varão de sua mãe e, portanto, arrimo de família, quando o capitão, sem deixar transparecer o tom de zombaria, ameaçou mandá-lo para a guerra como punição por um descuido qualquer. Não há nada pior para um recruta do que se recusar a partir para a guerra - ou levar a sério a zombaria dos superiores. O que no início pode não ter passado de provocação se transformou em represália. Desde então, nunca mais teve paz. Se tivesse ficado calado, e se resignado à bazófia do capitão, possivelmente não teria sido selecionado para uma missão como esta, forçado a arrecadar verbas para completar o salário dos superiores e sustentar o quartel falido. No ponto de ônibus, ele ajusta o capuz do moletom. Segue à risca as instruções do sargento Krássin. É melhor não ser interpelado por policiais - a cabeça raspada não deixa dúvida quanto ao recruta que ele é e que a esta hora devia estar na caserna, a menos que seja um desertor. Até que não seria mau se, graças a um contratempo qualquer, ele fosse preso e obrigado a revelar a verdade à polícia. Mas, nesse caso, só um milagre o salvaria quando voltasse para o quartel no dia seguinte.

As regras mudaram na última hora (houve denúncias recentemente). Não é que o sargento tenha optado pelo perigo por puro sadismo, que não lhe falta, porque assim estaria pondo a própria operação sob ameaça. A exigência partiu do próprio cliente, um oficial da reserva que, para não ter de passar mais uma vez pelo constrangimento de explicar aos policiais durante a ronda noturna o que fazia com o carro parado, à noite, nas imediações do quartel - e, não os satisfazendo com a explicação, ser obrigado a suborná-los para não ser indiciado por atentado ao pudor, por corrupção de militares ou por outra delinquência qualquer -, estabeleceu regras mais seguras para si. É o recruta quem terá de arcar com o ônus de chegar até o ponto de encontro e voltar para o quartel, com o dinheiro, durante o horário de funcionamento do transporte público. Andrei sabe o que o espera. É a primeira vez, mas não é difícil imaginar. Procura não imaginar. Como o ônibus não vem, decide tomar o metrô. É um pequeno ato de insubordinação. O que lhe resta de livre-arbítrio é também o que aumenta a sua margem de risco. Procura não pensar em nada para não sentir vertigem no alto da escada rolante que desce até a plataforma subterrânea. O movimento dos degraus subindo e descendo lhe revolve o estômago. Não há metrô mais profundo que o de São Petersburgo. Foi construído sob um enorme pântano onde jazem as ossadas dos servos e prisioneiros que ergueram as fundações da antiga capital. Enquanto ele desce aos subterrâneos, seu olhar cruza com o de um rapaz - barba por fazer e cabelos sebentos, presos num rabo-de-cavalo -, que sobe pela escada rolante ao lado, para a superfície e o frescor da noite de final de verão. Se existissem almas que pudessem abandonar os corpos em movimento, deixava a carcaça seguir só, inconsciente, e tomava o corpo de alguém na escada rolante ao lado, que sobe para a rua, assumindo uma nova vida, fora do quartel. Às vezes imagina que, no seu lugar, um homem de brios tivesse preferido levar outra surra e passar, com sorte, uma semana na enfermaria. Mas uma coisa não elimina a outra. Não há escolha no regimento. A única vantagem da surra seria perder a consciência, esse peso que vai se tornando insustentável - se não fosse preciso recobrá-la e voltar para o quartel, para novas surras e punições. A verdade é que Andrei pode apanhar até cair, mesmo depois de ser humilhado. Não adianta querer entender por que o simples fato de ser quem ele é, um mero recruta, o obriga a fazer o que não quer. É o seu lugar e a sua hora. Não é ele quem está subindo as escadas rolantes no lugar do rapaz de cabelos sebentos. Está descendo aos infernos. Procura não imaginar para evitar a vertigem e a náusea. Tenta se convencer de que está apenas cumprindo ordens. Para poder seguir em frente com alguma dose de irresponsabilidade.

A esta hora, não há filas diante das portas que dão acesso aos trens, alinhadas dos dois lados da plataforma, à imagem de elevadores no lobby de um prédio comercial. Quem trabalha já voltou para casa e o movimento está reduzido a tipos solitários e eventuais. Pelo menos até a chegada do próximo trem de Moscou ou dos balneários, quando famílias carregadas de malas, voltando das férias, serão despejadas nas principais estações da cidade, infiltrando-se pelas artérias do transporte urbano, como uma inundação. Por enquanto, a estação de metrô onde ele entra está vazia. Poderia ter escolhido qualquer uma das portas, mas vai se plantar justamente atrás do único passageiro além dele na plataforma - um velho com uma sacola de supermercado em cada mão, que espera diante da segunda porta à direita e que se afasta, resmungando algo incompreensível mas que obviamente tem a ver com o recruta, ao perceber a presença dele às suas costas. O velho procura outra porta diante da qual possa esperar sozinho. A escolha de Andrei traduz uma lógica simplória e infantil, como se na companhia do velho tivesse menos chances de ser desmascarado - e sua missão, de ser descoberta pela polícia -, como se, aos olhos dos outros (que ali não estão), pudesse estar acompanhando o avô de volta para casa. Se o velho não tivesse mudado de porta, era bem capaz que Andrei tivesse se oferecido para ajudá-lo com as sacolas de supermercado. O trem chega e as portas se abrem. No vagão em que ele entra, há apenas uma mulher com maquiagem carregada. Andrei senta, sem se dar conta, no banco diante do dela. É uma espécie de compulsão inconsciente. Evita ficar sozinho. Como se a proximidade dos outros pudesse desviar a atenção de si mesmo. É uma mulher destruída. Os cabelos louros embranquecidos e esfiapados mal cobrem a cabeça oval e o rosto macilento, com dois olhos azuis aguados, manchados de preto, e os lábios muito finos, quase inexistentes, borrados de vermelho, como se o batom fosse o resquício de sangue de uma fenda cosida. A mulher o encara. Andrei a imagina careca, com a cabeça raspada, como ele, ou morta, de olhos fechados e mãos gélidas. Arruma o capuz para cobrir melhor a cabeça, e se encolhe. A mulher não tira os olhos dele. Está a ponto de dizer.

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