domingo, 17 de novembro de 2013

História de um pegador

Sinceridade: não sou do tipo que chama atenção pelo porte físico ou coisa parecida. Já passei dos quarenta, meus cabelos me abandonaram há uns 07 ou 08 verões e minha protuberante barriga denotam o grande sucesso que tive na arte de comer e beber. Minhas rugas procedem da total falta de credibilidade em protetor solar (esse troço não é coisa de homem sério!) aliada a centenas de noites que fiquei sem dormir na expectativa de não ir para casa sozinho.

Bom. Esse sou eu.

Ainda bem que para caras como eu (porra! Tem um monte desses pôr ai) existem os desmanches.

O que é um desmanche?

Sinceridade: Na mesma proporção de caras como eu, existem mulheres com características semelhantes.

Se não são carecas, tem cabelos mal cuidados, se a barriga não é tão grande quanto a minha, tem lá aquela coisa instalada ali na frente. Ruga então?! Puta que pariu! Não quero falar disso.

Voltando ao assunto, um desmanche é um local onde se tem música, bebida, um globo vagabundo rodando no teto, banheiro mal cuidado, etc.

O local tem que ser escuro porque, sinceridade: Com muita luz acho que ninguém "pegaria" ninguém.

A balada que sempre vou (não vou chamar de desmanche, as mulheres se ofendem pois h áquem diga que estes locais tem estes nomes porque as "princesas" que freqüentam o local desmancham em um toque) fica perto da minha casa, pois não tenho carro e, se arrumo alguma coisa dá para ir a pé até o meu apartamento.

Coloquei minha roupa de passeio, quinzão no bolso (cinco para entrar e o resto para beber e comer um cachorro quente na hora de ir embora) e fui para a caçada.

Dancei forró, pagode, lenta (não sei nem como se chama hoje em dia estas músicas de se dançar juntos eu falo lenta e acabou!) com umas dez mulheres diferentes.

Já passava das quatro da madruga, eu já num prego do cacete, achando que ia ter de acabar mais uma noite sozinho, deparei-me com uma gata.

Não fui agraciado com beleza mas...papo... bom. Papo eu tenho.

Aproximei -me. Era um loira com uma calça preta com listas amarelas (estas calças de ir em academia) uma bota que imitava couro de cobra, um salto bem alto, o cano da bota ia até os joelhos o que dificultava um pouco os movimentos da "mocinha". Sua blusa era toda cheia de umas coisas brilhantes (não sei o nome destes troços) bem vermelha. Não sei se é moda, mas, tudo bem, eu não tava procurando ninguém para ser modelo e sim tirar o meu atraso.

Encostei do lado e comecei a jogar meu charme.

Sinceridade: Nem precisei conversar muito. Cinco minutos de conversa e já aceitou ir até minha casa. Eu também aceitaria no lugar dela pois, o primeiro ônibus que ia até a direção da sua casa só passaria a partir das sete horas.

Fomos caminhando até meu apartamento. Quando passávamos por luzes fortes podia ver com mais clareza seu rosto.

Amigos:

Se você tem menos de dezesseis anos e ou estômago fraco aconselho interromper a leitura a partir deste momento pois daqui para frente a coisa começa a ficar quente.

Tinha mais rugas que meu saco, já não sabia se era loira ou morena.

Quero dizer era morena pois o cabelo estava do ombro para baixo loiro e para cima moreno. Segundo ela com a próxima grana que ganhar de diarista vai dar um jeito no cabelo.

Sinceridade: A dona era até gostosa mas feia pra caralho mas, porra!

Eu não queria ela para bater foto, além do mais não aguentava mais ficar só na punheta. Precisava comer uma mulher, nem que fosse ela.

Abri a porta do meu apartamento e já fui beijando e socando a mão em tudo quanto é lugar, aí, como toda mulher faz, começou:

- Para com isso! Que é que você tá pensando!?

Tudo bem. Todos nós passamos por isso, até as feias tem direito àquelas frescuras do início.

Dei mais um beijão e já coloquei a mão no bolso e peguei umas balas.

Compreensível: Quatro horas da manhã, fumando, bebendo, qualquer um fica com bafo na boca.

Como toda mulher que você põe no carro ou leva para seu apartamento (até as feias são assim!!) já começou com aquele papinho - Acho que está na hora de ir embora...

- Puta que pariu, a gente tem que passar por isso. Tudo bem, tô ali de pau duro prontinho e tem que ter esta frase!!

Bom fiz minha parte: Conversava um pouco, beijava um pouco, passava a mão, pegava a mão dela e colocava em cima da minha calça, sabe como é, todo aquele ritual básico.

Passados longos dez minutos desta interminável lenga lenga, a Marta (este não é o nome real mas vamos deixar como se fosse), deixou eu tirar sua blusa.

Quando tirei a blusa encontrei um enorme obstáculo: estas cintas que apertam o corpo para tampar um pouco a gordura. Tirei aquele troço. Meu Deus!!

Sinceridade: O cheiro que saiu dali de baixo, se minha tara não fosse do tamanho do Pão de Açúcar, eu teria brochado, mas achei até compreensível afinal, ficar a noite toda dançando com aquele negócio quente enrolado no corpo, não podia dar em outra coisa.

Passados uns cinco minutos meu nariz já havia se acostumado com o cheiro. Pra quem já tinha beijado a boca fedendo a cigarro, um CC não ia matar.

Tirei o corpete (foi assim que ela chamou o negócio) e comecei a chupar os peitos. Tava meio salgado, quero dizer, tava bem salgado, mas, vamo lá, era para comer mesmo! Que mal tinha estar temperado?!?!

Fiquei ali chupando aquela coisa flácida por uns cinco minutos até que finalmente a Marta pegou no meu pau. Tinha, finalmente, quebrado a barreira entre o - acho que vou embora e o acho que vou te dar .

Começamos então a fase final. Ela com a mão no meu pau e eu com a mão na sua xoxota (fica bonitinho este nome!!).

Não deu dois minutos de dedinho e já veio com aquela outra famosa -

- Eu quero! Eu quero! - como se não quisesse desde o começo mas, tudo bem, respeito. Se não respeita, fica com fama de insensível e...bom, deixa para lá, vamos ao que interessa.

Como todo bom cavalheiro, tirei a mão de lá e coloquei no nariz para "reconhecer o gramado".

Sinceridade: Minha sorte que meu pinto não tem nariz, se tivesse acho que não encararia a parada.

Começamos a nos despir. Fui abaixar sua calça e me deparei com as

botas: Preciso comentar do cheiro que saiu de dentro das botas??? Se tivesse lugar, poderia jurar que ela escondeu um gato morto em cada pé.

Pensei em dar a primeira tomando um banho, talvez melhorasse um pouco as condições.

Fomos até o banheiro e, para variar, estava sem água.

Sinceridade: Tava louco para dar uma trepada. Meu pau já tava ardendo, as bolas começando a doer...Comi ali mesmo dentro do banheiro

(Sim. Usei camisinha!!!).

Comecei sentado na privada, depois encostei a Marta na parede do banheiro e peguei ela por traz. Pra não gozar muito rápido, fiquei

contando quantas bolas de celulite ela tinha na bunda. Quando chegou na vinte e cinco, ela pediu para mudar de posição, eu

estava tão empolgado com a minha estatística que nem percebi que ela batia a cabeça na parede com força e acho que já tava machucando.

Fomos para o corredor do apartamento (no banheiro não tem espaço para ficar deitado). Dei umas bombadas ali e fomos terminar na cama.

Dei aquelas gozadas de arder o canal. A Marta disse que gozou três vezes!!! (quem será que está mentindo eu ou a Marta???)

Depois que gozei, tirei a camisinha, dei aquela conferida para ver se estavam todos ali, amarrei a ponta e joguei no lixo.

Entrei então naquela parte conhecida pelos homens como o cúmulo da eternidade (Cúmulo da Eternidade: Os minutos entre depois que você goza e a hora em que você leva a mulher embora).

Sinceridade: Com pinto mole não há a menor possibilidade de encarar a Marta!!!

Já nos preparativos finais para ir embora disse que estava com fome.

Meus quinzão já tinham ido para o espaço (As balas não foram de graça!!). Perguntou se não podia pedir uma pizza ou comer um cachorro quente.

Para não ficar feio para minha cara, ofereci-lhe para fazer algo para comermos. - Nossa que romântico!!!- Pronto! Só faltava a baranga achar que gostei dela!!!

Fucei os armários e achei um Miojo. Na geladeira tinha uma destas latas de molho pronto de tomate que fazia uma semana que estava lá.

Fiz a gororoba. Tinha uns dois ou três tomates que só parti em quatro e coloquei junto para tirar aquele ar de anemia do prato.

Sentamos e comemos. Comi pouco, a Marta acho que fazia uma semana que não comia.

Não deveria ter colocado aquele molho.

A Marta comeu um monte e começou a passar mal. Ficou com dor de barriga. Fiquei com um pouco de dó dela. Dar um cagão na casa de alguém que você acaba de conhecer, não é o "sonho" de nenhuma mulher.

Lá foi a Marta . Quase seis horas da manhã, nenhum barulho na rua, a porta do banheiro não fecha direito.

Sinceridade: Nunca uma mulher tinha ido ao banheiro perto de mim (para cagar!) e logo na estréia tive direito a show de efeitos sonoros.

Aquele barulho de quando você acelera uma motoca velha, denunciava e forma "lïquida" que a coisa tava vindo.

Minha TV queimada, o rádio meu irmão havia pego emprestado. Tive que ouvir a sinfonia do começo ao fim.

Ouvi quando ela tentou puxar a descarga (estava sem água, lembra???), quando tentou abrir a torneira para lavar a mão, ambos sem sucesso.

Veio então nossa heroína daquela batalha que achei não ter mais fim.

Foram quinze minutos de barulhos de motoca e de água escorrendo.

Ela saiu do banheiro deixando lá toda a sua obra, deu uma cheirada na mão, esfregou-as e me abraçou.

Eu sabia que o cheiro que eu estava sentindo era do banheiro mas, eu tinha a sensação de que vinha da sua boca.

Dei-lhe minhas últimas balas. Aquelas mãos passando em meu rosto como quem quer fazer um carinho, não sei quanto tempo poderia aguentar.

Pegou no meu pau de novo, viu que estava mole e disse: - Vou levantar o bebê de novo. (bebê???)

Abaixou minha calça e começou a me chupar.

Sinceridade: Um boquete é sempre um boquete. O danado mesmo com todo aquele cheiro de enxofre no ar (ele não tem nariz, lembra???) ficou em pé de novo. A moça então resolveu escancarar:

Começou a fazer um streap (nem sei escrever isso!!).

Preferia a boquete mas, tudo bem, vamos respeitar o ritual, para não parecer insensível.

A sala estava meio escura e ela, achando que estava realmente me agradando com aquelas incontáveis bolas de celulite (tinha parado na 25 lembra???), acendeu a luz.

Quando tudo ficou mais claro olhei para aquela bunda e pensei: Puta que pariu, a gorda tem um monte de espinha na bunda para ajudar.

Na verdade para meu espanto ou alívio (já não sabia mais o que pensar) não eram espinhas. Eram algumas sementes do tomate que coloquei na macarronada. A desinteria deve ter escorrido por toda sua bunda e o papel higiênico não limpou tudo que podia e elas ficaram por ali   grudadinhas.

Peguei minha cueca, dei uma cuspida, limpei em volta e comi a Marta de novo.

Sete horas da manhã a Marta pegou o ônibus e foi embora.

A água voltou às dez horas.

Não quero mais tocar neste assunto.

domingo, 13 de outubro de 2013

A culpa é do samba

O quadro "A Culpa É do Samba" (Blame it on the Samba) da Disney, parte do filme de 1948 "Tempo de Melodia" (Melody Time), dublado.
O Pato Donald, Zé Carioca e o Aracuã dançam ao som do Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, cantado pelas Dinning Sisters (na versão em inglês), e pela organista-hammond Ethel Smith.

Para mais informações, leiam o texto de Daniella Thompson "A Culpa é do Walt"
http://daniellathompson.com/Texts/Inv...


Blame It on the Samba
(Ernesto Nazareth/Ray Gilbert)
If your spirits have hit a new low
And they long to hit a new high
One little musical cocktail
Will lift them to the sky

Mix a jigger of rhythm
With a strain of a few guitars
And a dash of the samba
And a few melodious bars

And then, and then...

You take a small cabassa (chi-chi-chi-chi-chi)
One pandeiro (cha-cha-cha-cha-cha)
Take the cuíca (boom-boom-boom-boom)
You’ve got the fascinating rhythm of the samba

And if guitars are strumming (chi-chi-chi-chi-chi)
Birds are humming (cha-cha-cha-cha-cha)
Drums are drumming (boom-boom-boom-boom)
Then you can blame it on the rhythm of the samba

For there is something ’bout the beat you cling to
That’s the type of song you sing to
That’s the kind of thing you swing to
When you get to bouncing with the beat in your feet

But when you’re bouncing to the beat you’re reeling
With the carioca feeling
But if you want to hit the ceiling
Here is all you have to do

You take a small cabassa
[...]
  A Culpa É do Samba
(Ernesto Nazareth/Ray Gilbert)
Se o seu ânimo chegou lá em baixo
E ele quer voltar ao topo
Um pequeno coquetel musical
Irá levantá-lo para o céu

Misture um dose de ritmo
Com um verso de alguns violões
E uma pitada do samba
E alguns compassos melodiosos

Então, então...

Você pega uma pequena cabaça (chi-chi-chi-chi-chi)
Um pandeiro (cha-cha-cha-cha-cha)
Pegue a cuíca (boom-boom-boom-boom)
E você tem o fascinante ritmo do samba

E se os violões estão dedilhando (chi-chi-chi-chi-chi)
Pássaros estão cantarolando (cha-cha-cha-cha-cha)
Tambores estão tamborilando (boom-boom-boom-boom)
Então você pode pôr a culpa no ritmo do samba

Pois tem algo no ritmo em que você se amarra
Esse é o tipo de música que você canta
Esse é o tipo de coisa que você dança
Quando você pula com o ritmo em seus pés

Mas quando você ao ritmo tá pulando,
Com o gingado carioca você tá balançando
E se você quiser bater no teto
É só fazer isso:

Você pega uma pequena cabaça
[...]

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

ESCUTATÓRIA

Rubem Alves

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. 
 
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia. 
 
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos... 
 
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião. 
 
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto... (O amor que acende a lua, pág. 65.)

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